Friday, June 16, 2006

Tentando me reconhecer pelos retratos, ficava horas olhando o contorno do rosto, e tentando descobrir em que célula eu me perdi. Não existe mais olho, não existe infância, amor, não tem mais nada. Do bebê que eu contemplava, nada sobrou. Minha boca cresceu e minha fome é gigante. Nada mais é meu, nada. Não posso dizer nem que cresci e a pele esticou, porque não é verdade. A pele foi descascando, a boca também, talvez os olhos apenas tenham crescido. E meus olhos são loucamente míopes. A única coisa que resta é um defeito de visão, que foi crescendo com a proporção corpórea, e agora me toma inteiro. Lentes de contato não me salvam, elas grudam no meu olho quando eu fico de ressaca, denovo, e durmo com elas por que tenho preguiça de ir até o banheiro e fazer a higiene pessoal. Sempre digo: quando me sinto assim, desolé, deito e durmo de roupa e tudo. Não tiro sapatos, não dispo alma, não tomo banho, não faço nada além de deitar e dormir. Não reconheço mais, às vezes, eu mudei demais. A cada segundo, eu mudo demais. Ontem eu tinha apenas um ou dois traços, ontem eu era esperma, amanhã serei um ninfeto infernal, depois serei um claustro. Da boca, não resta nada além de fome. O tecido foi descascando, e crescendo. Uma cobra trocando de pele, talvez. Não existem mãos o bastante, nem coração o bastante. Não tem nem clavícula. Talvez uma medula óssea. Mas se tem os olhos, que mal fazem se eles enxergam, mal... mas enxergam?
Meu consolo são os olhos, esses... esses não mudam. Só que eles eram maiores quando eu tinha um ano de idade, mas não importa. De alma ele não se perde, graças a deus. Pelo menos a alma fica, independente de quantas pelagens eu perdi, de quantos cabelos compridos eu deixei pelo caminho. Independentemente de tudo, a alma fica presa nos olhos. É o gênio da lâmpada. E ninguém que esfregue tira.
Estou digno, estou são. Bebi muita água e não fumei ainda. Mentira, fumei quando acordei. Depois que passei o dedo nos retratos e me vi tão pequeno. Sempre que me contemplo, desolo por um segundo, depois eu volto. E me olho no espelho. Ah, esses olhos... hoje são mípes e errados, hoje eles são desproporcionais. Eles não cabem em mim. Estrábico, impulsivo, meu olho esquerdo.
Mas ele me basta, afinal, não destruo jamais os retratos.